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Scarface: autenticidade e megalomania

  • Por Pablo R. Cardoso
  • 2 de set. de 2015
  • 5 min de leitura

Gosto tanto dos filmes quanto da discussão e ensinamentos que eles podem proporcionar. “Scarface”, no caso, é um tratado da condição humana e deveria ser ministrado para qualquer profissão que trabalhe com o homem.

Dito isso, “Scarface” está entre os meus filmes preferidos. E assim o é desde a primeira vez que o vi, falado em português, em uma madrugada na Rede Globo. Qualquer um que me conhece sabe da minha repulsa de longa data por filmes dublados. Calculem, então, o quanto estava inebriado pelo que assistia em tela para conseguir ignorar a mutilação da arte. Por gostar tanto da obra, sigo o ritual que faço com os demais mimos: o assisto, pelo menos, uma vez por ano. A cada revisitada, uma novidade. Na última vez não foi diferente e tive novas ideias que valem a pena serem postas no papel, mesmo que simbolicamente.

“Scarface” conta a história de Tony Montana, prisioneiro cubano que ganha asilo nos EUA após engenhosa negociação diplomática entre Fidel Castro e Jimmy Carter, que acabou acarretando a chegada de 125 mil refugiados à Florida em 1980. Segundo o próprio filme, estima-se que 20% destes tinham antecedentes criminais. Abrigado em Miami, Montana rapidamente começa sua escalada no submundo do tráfico de drogas e ergue um império baseado em cocaína, o que será tanto sua glória, como sua ruína.

O filme narra o clássico conto do “American dream”: o miserável, desamparado e sem chances de sucesso, chega à América e triunfa na cidade grande a partir de seus méritos e sua determinação infinita. Só que, nesse caso, o conto é apresentado em uma versão torta e o “underdog” é desprezível, o que torna a história ainda mais interessante para o espectador. Com a câmera acompanhando Montana por quase toda a projeção (são poucos os minutos em que ele não está em tela), somos convidados a ocupar a posição de cúmplices e testemunhas de suas ações.

Ações essas que misturam seus momentos de grandeza e suas fraquezas, que, constantemente em contradição, revelam que o personagem está muito mais para um impetuoso com boas sacadas do que um calculista determinado. Aliás, são nos momentos de ímpeto descontrolados em que Montana cresce e se torna memorável tanto em tela quanto fora dela.

Memoráveis também são as lições sobre o humano que podemos tirar desse filme. Mesmo com vários personagens querendo passar ensinamentos ao protagonista, o curioso é que Montana é melhor professor quando serve de objeto de análise ou contraexemplo. Para não me alongar, selecionarei apenas três dentre as várias possíveis.

A primeira delas é quase banal, mas facilmente esquecida nos dias de hoje, em que impera o marketing do comportamento. “Scarface” nos lembra que estamos mais próximos do que e quem realmente somos nos momentos de impulso do que nos momentos de paz. É quando deixamos a pose e o controle é perdido que somos mais sinceros e autênticos. Afinal de contas, não há esforço em ser virtuoso na ausência de conflitos. E, são exatamente nesses momentos que as intenções são explicitadas.

Ao longo do filme acompanhamos a crescente de sucesso de Tony Montana e, simultaneamente, sua obsessão por comandar o que lhe é exterior, como a mansão, o império erguido e a vida da irmã. Todavia, em todos esses momentos o protagonista está em um complicado jogo entre impulso e premeditação. Assim, ao se autoconter, faz um movimento que revela desespero, como se domesticando o que é de fora pudesse aquietar o que lhe inquieta internamente.

É justamente quando tudo que construiu começa a desabar que faz com que ele perceba que toda a aparência não tinha consistência e que, no final das contas, não era de grande significância o seu empenho. Nesse momento o protagonista explode e descarrega o que estava guardado com ele até então. Isso ocorre na belíssima cena no restaurante, quando bêbado e descrente, encara a high society de Miami e proclama um elaborado e denso discurso. Ao concluí-lo, sentencia: “Eu sempre digo a verdade, mesmo quando minto”.


Com isso, o trágico herói não está tão distante do seu extravagante e estimado animal de estimação, o tigre. Ambos não podem ser facilmente amansados e a corrente sempre está a um passo de arrebentar. O que culmina na segunda lição: o ímpeto é mais forte que o controle.


Por toda a narrativa acompanhamos Scarface indo aos extremos (ou, parafraseando a trilha sonora: pushing it to the limit). Seus interesses e aquilo que o move sempre estão além do que ele pode ou deve fazer e do que ele consegue domar, sendo bem exemplificados no amor incestuoso pela irmã, no interesse pela mulher do seu chefe (que futuramente se tornaria sua esposa), na insubordinação e na dependência de cocaína. E, invariavelmente, todas essas vontades precisavam ser realizadas, mesmo que o levasse às curvas descendentes na sua jornada e a colocar o que tem em risco. É perceptível como o personagem fica sem chão nesses momentos, como se toda sua sustentação anterior não fosse o bastante para lidar com essas situações.


Isso nos aproxima ao que Sigmund Freud chamou de terceiro golpe narcísico da humanidade: o homem não é dono nem da própria casa. O pensador, com essa frase, quer afirmar que, fundamentalmente, somos tão frágeis e impotentes perante os nossos desejos que nem da nossa própria vida temos as rédeas. Usando a relação de Montana com a cocaína como exemplo, poderíamos dizer que não é ele que tem os vícios, mas os vícios que o têm.


Esse simples deslocar de posições que o filme nos recorda, do homem não ser a medida das coisas, casa com talvez a maior lição que o filme possa transmitir. Apesar do que dizia o dirigível, o mundo não é nosso. Crer naquelas palavras que apareciam quase como um sinal divino foi o maior equívoco de Scarface.


Acompanhando o filme, percebemos que a frase é extremamente importante para ele e serve como modelo a ser seguido e legitimação de suas futuras ações. Vira quase um mantra, uma vez que é usada em sua companhia de turismo e também em uma escultura em sua casa. Funciona, então, como um destino manifesto, em que seria função de Montana conquistar o mundo que lhe é de posse.


Ao supor isso, o herói ignorou completamente a condição incontrolável da vida. Passa a se comportar, portanto, como a reconhecendo apenas na medida do que consegue perceber e dominar. A sua paranoia e o sistema de vigilância oriundo dela demonstram isso. Eles existem como uma consequência do personagem acreditar na frase que viu no balão, como se a afirmação carregasse uma dimensão de ser não só verdadeira, mas de algo possível de ser feito.


Desdobrando isso, é interessante perceber como o filme tem em seu desfecho o realismo fantástico e como ele está a serviço da narrativa. Na emboscada final, invadem a mansão de Montana para assassiná-lo. Do alto da sacada, ele troca tiro com os invasores. Em determinado momento o protagonista fica invulnerável, com os tiros lhe acertando e não fazendo efeito, o que faz com que ele provoque seus opositores e se vanglorie de sua condição. Então, calmamente, um inimigo vem pelas suas costas e dispara apenas uma vez. É o fim do protagonista.


Ao achar que lhe pertencia, Scarface acabou, na verdade, dando as costas para o mundo. Foi derrotado justamente pelo que estava além do que julgava existir. Por viver uma abstração, acabou por negar a vida e a sua dimensão frágil, bem como o domínio do acaso e do incerto. Esse foi o seu maior erro e, via contraexemplo, foi a maior lição que poderia nos ensinar.

 
 
 

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